8 October 2013

Eclosão Estival

"Foi bem fecunda a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!"

Camilo Pessanha

Nos quintais de outrora, sob as buganvílias roxas
e a antiga parreira, as mulheres amadas deitavam-se nos
[canteiros, como
flores que pedem água, ouvindo a música das raízes e 
o canto das cigarras. Falavam umas com as outras, e ouço-as,
ao longe, enquanto a tarde cai.

Gosto dos véus negros que lhes cobrem os olhos; das luvas
com que protegem as mãos, quando limpam dos muros hera e cal; e
dos lábios entreabertos, onde o amor se perde num labirinto
de frases. Empurro as folhas e ramos até chegar junto delas, num
ruído de ceifa, por entre tules e pétalas.

As mulheres de outrora sacodem os tapetes da memória,
deitam à rua o pó dos séculos, e o seu riso mete-se pelos sotãos, ecoa
no forro dos telhados, num suor de desejo, e escoa-se pelas goteiras
de onde o bebo, no inverno, imaginando os seus corpos que
o verão despiu num furor de corolas amadurecidas.

Partilhei com elas a tarde e o cio. Rasguei as suas frases corroídas
por um caruncho de arcas. Transformei a ternura dos seus dedos
num angústia de pedra. Despeço-me sem pressa dos olhos que
[nunca
fixei - o espelho vazio dos sentidos, o poço sem fundo das vidas
que perderam, deitadas na terra, sob o céu e as buganvílias.

Nuno Júdice, in Geometria Variável



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