19 March 2014

"O que nos resguarda é o peito da outra pessoa"

[Uma passagem deliciosa escolhida pela Mafalda aqui.]

(...) alguém que porventura não vemos e que nos resguarda as costas com o peito, que está prestes a roçar em nós e acaba sempre por fazê-lo, e às vezes, inclusive, essa pessoa põe-nos uma mão no ombro, por meio da qual nos tranquiliza e também nos agarra. Assim dorme, ou está convencida de que dorme, a maioria dos casais e namorados, os dois voltam-se para o mesmo lado quando se dão as boas-noites, de modo que um passa a noite inteira de costas voltadas para o outro e sabe que está amparado por ele ou ela, por esse outro, e, a meio da noite, ao acordar sobressaltado por um pesadelo ou sentindo-se incapaz de conciliar o sono, ao ser acometido por uma febre ou julgar-se sozinho, abandonado e às escuras, basta-lhe dar meia-volta e ver então, à sua frente o rosto daquele que o resguarda, que se deixará beijar em tudo o que no rosto for beijável (nariz, olhos e boca; queixo, testa e faces) ou quem sabe, meio adormecido, lhe pousará uma mão no ombro para o tranquilizar, ou para o agarrar, ou talvez para se segurar a si próprio.

Javier Marías, in Coração tão branco

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